quarta-feira, 19 de setembro de 2012

NÓS, O PALMEIRAS

 
 
 
 
 
 
Texto retirado do blog Cruz de Savoia do @SeoCruz.
 
Esse texto é de seu irmão André.Texto brilhante que fala do Palmeiras e publicado no dia de San Gennaro.
 
 
 
"Os senhores vão me dar licença, mas jamais crônicas minhas haviam sido publicadas, neste Literário, numa data tão próxima ao dia em que a Sociedade Esportiva Palmeiras comemora seu aniversário. Portanto, desta feita, não vou encontrar meios de escapar de certas obrigações. Explico-me. Corre agora meu terceiro agosto ocupando este espaço. Nas ocasiões anteriores, foi diferente. Tive tempo suficiente, entre a tarefa de escrever e a referida data, para contornar qualquer sentimento – seja de obrigação da minha parte, seja de expectativa dos outros, os que me lêem – que me impusesse a missão de tocar em assunto tão perigoso. Entretanto, como preparo com um dia de antecedência (ou ao menos deveria fazê-lo, afinal) essas crônicas com as quais lhes amolo, o ano da graça de 2008 reservou-me a tarefa de elaborar esta justamente em 26 de agosto – dia em que o Palmeiras completa 94 anos, donde não estou conseguindo pensar em mais nada a não ser em tambores rufando, sinos repicando, incenso, Honra e Glória. Não sei se foi sorte, não sei se foi azar. Talvez tenha sido sorte, porque dentre os maiores deleites que há nesta vida está o de discorrer sobre o objeto do nosso amor. Mas receio que talvez tenha sido azar, porque não costumo sair-me
bem nesse tipo de aventura – como direi? – menos debochada.
 
Vejamos.

Sei que já disse, antes, muito do que penso sobre o futebol, sobre seus principais clubes, sobre as torcidas dessas agremiações. Portanto, não vou maçar ninguém com assuntos ou piadas velhas, por melhores que sejam. Apenas, parece-me que é o caso de lembrar-lhes daquela minha opinião segundo a qual nossos times de coração não são outra coisa que não nossas pequenas pátrias. Porque, de muitas maneiras e sob diversos ângulos, o Palmeiras, para mim, é um lar, e a cada vez que vejo aqueles homens – quaisquer que sejam, onde quer que seja – entrando em campo enfiados no fardamento esmeralda, então é como se eu voltasse para casa. Para a minha casa. Para a casa do meu pai, para ficar
ao lado dos meus irmãos.

Conheci muitos sujeitos, muito sensatos e os quais respeito muitíssimo, incapazes de compreender por que times de futebol são tantas vezes tratados como se fossem algo além do que são – times de futebol, nada mais do que times de futebol. Gostaria de enriquecer-lhes o espírito esclarecendo dois ou três pontos de fundamental importância. Compreendo que o Palmeiras não é, literalmente ao menos, minha família, e que aqueles que são literalmente minha família me são mais valiosos do que o Palmeiras; mas não posso deixar de acrescentar, complementarmente, que, por outro lado, uma família minha sem o Palmeiras poderia ser algo muito digno de devoção, mas ainda assim seria outra coisa totalmente diferente desta família na qual cresci e que farei crescer; e que, portanto, o que os senhores pedem quando me pedem menos arrebatamento ou grandiloqüência ao referir-me ao Palmeiras parece-me antes sugestão para que eu invente, do nada, uma família desconhecida e obviamente inexistente, para somente depois, tarde demais até, soar como algo vagamente assemelhado a um chamamento à
sensatez e à racionalidade.

Não há um único dia em minha vida em que eu não me lembre do Palmeiras. Quando acordo, a primeira coisa que me ocorre é que Deus é bom e perfeito e me permitiu acordar de novo, e de novo, e outra vez – o que, diante de minha dieta, acresce de ares milagrosos a já fantástica rotina do Universo. A segunda é que Deus é bom e que me permite, de maneira não menos milagrosa, acordar ao lado de uma mulher talhada para o meu talhe e, de quebra, estupendamente cheirosa – e isso todos os dias, abençoados. A terceira, consecutiva e célere, desde que me
conheço por gente é:

- O Palmeiras joga hoje?

E só depois me lembro de que o mundo tem manteiga, frutas, ovos, leite e pão, que a água encanada e a eletricidade já chegaram ao Cambuci Profundo, especialmente para esquentar meu banho, e que quase nada conhecido valeria o prazer de mijar grosso e barulhento na manhã do dia novo.
Há fatores curiosos nessa relação. Quanto pior for a situação do time, menos chances há de minha atenção desviar-se, dentre outras coisas porque se há algo que caracteriza essa afeição é que não há a menor necessidade de explicá-la por inteiro – daquele modo como se explicam tão bem tanto as vacinas como os genocídios. Assim, munido de motivos muito racionais, mas nem por isso articuláveis em sua plenitude, posso amar o Palmeiras não porque ele é campeão, rico, belo ou grande, mas sim fazê-lo grande, belo, rico e campeão porque o amo – o que é muito mais bonito de se fazer, além de um jeito muito melhor de se tocar a vida.

A memória de que sou palmeirense caminha ao meu lado o tempo inteiro; não ativa, histérica e patológica, mas como a certeza silenciosa e tranqüila de que amo viver, de que sou casado, de que não devo roubar, mentir ou desejar o mal. A memória de que sou palmeirense permeia algumas de minhas melhores memórias; o sol esplendoroso do Palestra lotado ou o pomar dum sítio que não vou ver mais, a pizza na Turiassú ou a chuva nas minhas costas durante a peleja perdida no verão remoto, os grandes natais que ainda promoverei, o filho que ainda vou ter, meus mortos que ainda vou enterrar – todos tão meus como o Palmeiras.
Em breve – coisa de dias – o Palmeiras jogará de novo. Horas antes, exatamente como muitos e muitos muito antes de mim, vou fazer soar o som atômico no meu rádio. Cada minuto dessa nova transmissão será mais um passo do ritual ancestral e sagrado que me lembra de quem eu sou, de onde eu vim, de onde vieram os meus. Assombroso, o aviso de sempre soará mais outra vez, grave e poderoso como as terríveis profecias do deserto: aqui somos nós, os moços e velhos que, fugindo da fome, da guerra e da morte, viemos a esta terra estranha, agora tua também, juntar nossos braços às forças que ergueram o colosso onde tu moras e de onde tiras o sustento de tua família. Aqui somos nós, aqueles que partilham contigo o gosto pelo barulho, pela música e pela dança estridente, pelo drama e pelo exagero, pelo abismo e pela ressurreição. Nós, que amamos a vitória e que não nos envergonhamos dela, e que por amor a ela e às festas, ao brilho e à música criamos essa força, esse símbolo no qual tu deves te apoiar para não te esqueceres de quem és – nem do que em ti é mau, nem do que em ti é bom. Nós somos o passado e somos tu, somos teu pai e seremos teu filho.
Aqui somos nós, ainda de novo.
Nós, o Palmeiras."

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